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10.9.10

Bonsaido

Já em Lisboa. Depois de um dia e meio de viagem. O efeito do jat-leg volta.
Metade da cabeça ainda está do outro lado do mundo. No Japão. Surpreendente até ao último segundo. Quando já pensava que os últimos dias seriam uma continuação dos anteriores, de repente Oyokata volta a trocar-me as voltas. Diz “Nós agora somos um grupo. Estamos juntos. Quando um cliente chega dizemos todos: konishiwa! Juntos.”. Na altura não percebi bem o sentido destas palavras... pensei “Sim, eu sei, saúdo sempre os clientes desde o primeiro dia... é uma das regras de ouro de Taisho-en... será que falhei algum? Será uma reprimenda?... mas ele nem parecia chateado...”. Nos dias que se seguiram, percebi. Todos me passaram a tratar como um “aluno da casa”, “Old Student” como diz Asanuma. Um Old Student é aquele que já sabe “The Taisho-en way”. Não precisa que lhe digam as tarefas. Sabe o que tem que fazer e faz. Para dar um exemplo, anteriormente, diziam-me quando era altura de regar e era-me atribuída uma área. Desde esse momento isso nunca mais aconteceu. Passei a regar onde sabia que era preciso. A equipa trabalha em sintonia e tudo se resume a pequenos gestos de confirmação. Mesmo o trabalho com as árvores no workshop mudou. Oyokata deixou de me explicar tudo. Dizia-me qual a árvore e o que era para fazer e depois voltava para ajustar os pormenores. Em alguns momentos até permitiu que trabalhasse com ele. Passaram a falar-me de outros estudantes como se eu os conhecesse perfeitamente. Um dia, pedi a Assanuma ajuda para embalar a única árvore que consegui trazer comigo (ele é craque a fazer isso) e no meio de um sorriso veio a resposta “No...no...no... New students I help. Old students do it them selves”. Apesar de aumentar muito a responsabilidade, esta súbita mudança fez com que o final da minha estadia fosse muito gratificante.
No último dia, como partia para o Aeroporto depois do almoço, já não era suposto fazer nada. Como Oyocata não tinha estado no dia anterior, fui cedo para Taisho-en. Ainda tinha um grande Goyomatsu (o último do post anterior) que ele me tinha deixado para fazer para lhe mostrar. Um toque daqui, outro dali... “Ok, put back”. Depois mandou-me ir seleccionar mais dois shimpaku para o Manoel trabalhar, depois a rega... “Épá... estou quase a ir-me embora e isto continua como se nada fosse?”. É que um aluno, mesmo que de partida, enquanto estiver em Taisho-en continua a participar normalmente no dia-a-dia. Desde de que não vá todo sujo para o comboio... lol.
Ao almoço, Oyocata disse-me: “Agora, quando voltares para Portugal, podes começar a ensinar. Dar aulas a grupos. Pensa nisso.”. Já na despedida, depois da tradicional “foto de família”, vieram as palavras que todos os alunos querem ouvir: “Come back. If you feel like, come back”.
Da esquerda para a direita: Tayga, João, Oyakata, Chu, Asanuma e Manoel.

“Do”. Em japonês é o caminho e maneira como o fazemos, “the way”. Nas artes tradicionais é um conceito sempre presente fazendo por vezes parte do nome, como em Judo ou Kendo. My Bonsaido. Pois o meu caminho voltou a mudar. Desta vez profundamente. Mesmo sabendo que isso iria acontecer, nunca pensei que fosse de forma tão abrupta. Como uma Caixa de Pandora. Agora já está aberta. Não à volta. A vontade de regressar a Portugal caminha, ao mesmo passo, com a vontade de continuar em Taisho-en. Esta é a minha nova “segunda casa”. É lá que está o meu mestre, Nobuichi Urushibata, um dos grandes nomes do bonsai da actualidade, vencedor por várias vezes do Kokufu Ten. O meu Bonsaido passa agora por aqui. No fazer e no sentir.
Sayonara.

9 comentários:

Luís Cunha disse...

Olá João,

Bem vindo de volta =)

Muito bom, lêr as tuas palavras, dá para sentir o gosto e a emoção com que trabalhaste...

Muito interessante é o que o mestre acabou por te dizer para pensares! Em dares aulas por cá! Parece que ele faz sempre questão, que o seus alunos vão passando o conhecimento nos seus países, chega a parecer uma condição para estudar em Taisho-En...

Dá para ver, a vontade que tens em voltar é muita, mas antes tens que me contar tudo na 1ª pessoa =)

Grande abraço

Mesquita disse...

Bem vindo Mestre João

João Pires disse...

Olá Amigos,
Embora ainda um pouco "abanadado", sabe bem estar de volta ;)

Luis,
É verdade, esta viagem foi mesmo um "abanão" dos grandes. Temos que combinar um encontro um destes dias.

Jorge,
LOL... Mestre é coisa que estou longe de ser... Para aí um cinto amarelo ou laranja vá... ;)
Mas já agora, deixo uma curiosidade. Um aluno estrangeiro, mesmo que estude os tais 5 ou mais anos, mesmo que seja muito talentoso e se torne um grande "bonsai artist" no ocidente, nunca é considerado um Mestre no Japão. Isso nunca aconteceu. Esse grau está reservado para os japoneses, como Tayga, que é um dos jovens Mestres da nova geração.

Abr.
João

MMeruje disse...

Olá João,

Já me tinha perguntado por ti !!!

Como é voltar? A ver se combinamos algo, deves ter muita coisa para contar na primeira pessoa :D


Abraço !

João Pires disse...

Olá Márcio,

Estava aqui a pensar que ainda te estou a dever um mail... Voltar é um pouco estranho. O olhar é diferente... Talvez seja do jat-leg ;)
A ver se combinamos.

Abr.
João

Carpácio disse...

Welcome back :)

Abraço,
David

Rui Marques disse...

Viva João,

Ainda bem que voltaste não será a melhor forma de te cumprimentar, uma vez que o teu desejo talvez seria de lá teres ficado.

No entanto foi com grande satisfação que acompanhei aqui no teu blog o desenrolar da viagem.

Bem haja.
Rui Marques

João Pires disse...

Olá Amigos,
Obrigado pelos comentários!

David,
Muita conversa para por em dia... heheheh ;)

Rui,
É bom saber que estavas por aí a ler. Quando disse que ficava é verdade, mas por mais uns tempos... lol... porque na verdade, as saudades de casa já eram muitas.... e as oliveiras? E os sobreiros? Também já tinha saudades!

Abr.
João

Mariana disse...

“Aqui, entre os juncos e as flores do lótus
compreendi que o inferno e o céu,
por mais que os deuses e os livros nos levem
a pensar o contrário, estão no coração do homem.”

Excerto da poesia de José Jorge Letria, numa obra claramente relacionada com o Japão, que tem outro poema cujas palavras vou “deturpar” um pouco, a bem de homenagear a tua viagem:

“É como se sempre aqui tivesse vivido,
Como se as minhas raízes se perdessem
No magma dos vulcões (…)”
E, acrescento eu, se fundissem com as raízes de Taisho-en.

Um bom regresso, João.
E que essa tua viagem interior continue…